* Paula Ramos
A perda é inexorável. A trajetória humana, de qualquer um, é permeada por ausências. E embora a grande maioria das pessoas tenha consciência da inevitabilidade da morte, superá-la sempre envolve um caminho penoso. Dione Veiga Vieira, em Fragmentos Primordiais, exposição que segue até 3 de outubro junto ao Museu de Arte Contemporânea do Estado, MAC-RS, fala-nos dessa dor, da consternação diante do vazio. Sua reflexão foi motivada por uma experiência pessoal e traumática: a morte prematura, porém prolongada, de sua mãe, ocorrida há pouco mais de dois anos.
Na merecida sala especial junto ao MAC, Dione construiu simbolicamente mais uma etapa de depuração desse processo, por meio dos vazios e da impossibilidade: cadeiras sem assentos; mesas sem tampos; molduras sem imagens; espelhos manchados e opacos, nos quais a imagem se desbota; oito marcas de pratos, apenas elas, na toalha de mesa tomada pela erva daninha que sufoca a mesa e os afetos.
Como pontuou Angélica de Moraes no belíssimo texto sobre a exposição, há nesse trabalho muita raiva e dor, ira contra o absurdo e precário que ronda a existência. Tal sentimento paira nas cinzas espalhadas, no pó, nos talheres antigos, nas datas desbotadas no tecido, nos vestidos festivos, porém tristes, nos enormes ganchos de carnes, a fisgar-nos e a rasgar-nos. A dilaceração reside nas centenas de fotos colocadas lado a lado, distorcidas e em apagamento, mostrando um vestido bordado, usado pela mãe da artista com vaidade na juventude e que persiste, tal como relíquia, sob o vidro de uma das mesas. Presença entranhada na ausência, respirando nos objetos, vivenciados ou não. Esse é um aspecto particularmente interessante da poética de Dione, uma vez que poucos dos elementos que utiliza integram, efetivamente, o seu arquivo pessoal. A grande maioria deles foi adquirida em lojas populares, de usados, até mesmo na rua. O comovente vestido de criança, no qual se lê, em caprichoso bordado, Ana Maria 22.04.1963 e Mariane 27.12.1964, foi comprado num brechó. O mesmo aconteceu com o traje branco de noiva, sutilmente exibido pelo avesso, como a revelar nódoas de um corpo, vestígios de suor. É que à artista não interessa a essência objetiva das coisas, mas sim as relações que elas podem suscitar, metafóricas e de memória. No caso do vestido infantil, quantas não são as perguntas: Quem foram Ana Maria e Mariane? O que aconteceu com elas? Suas histórias foram felizes? Trágicas? Estarão vivas?
Dione, efetivamente, dá margem à construção narrativa do espectador, à imaginação e ao espelhamento. O resultado é que a grande maioria dos que percorrem sua instalação sentem-se logo envolvidos e abraçados, mesmo que, num primeiro momento, o que recebam seja um amargo soco no estômago. É natural. Em toda sua trajetória, Dione nunca procurou fazer uma obra bonitinha ou asséptica. Pelo contrário: busca mobilizar as pessoas, propor novas sensações a partir de elementos e jogos perceptivos nem sempre fáceis e agradáveis ao olhar apressado dos dias atuais. Em suas reflexões sobre o humano, sobre o corpo e sua fragilidade, a artista diversas vezes se apropriou de estopas encharcadas em líquidos vermelhos para referenciar vísceras, ou de mangueiras transparentes remetendo a veias: simulacros tola e facilmente reduzidos a certa escatologia. Dione, contudo, não se importa. Na realidade, ela gosta e precisa tocar de maneira profunda as pessoas. E os objetos, adotados em suas obras mais recentes, constituem um veículo privilegiado para isso, uma vez que fazem parte do cotidiano de todos nós, cada qual em sua especificidade.
Em Fragmentos Primordiais, os móveis, gavetas e objetos estão harmonicamente articulados nos cerca de 500 m2 do espaço, que tanto assustam vários artistas e que Dione soube domar, com síntese e elegância, recriando o ambiente de uma casa, mesmo que devastador.
Muitos poderão dizer, de maneira precipitada, que se trata puramente de uma espécie de terapia, como se a artista quisesse exorcizar seus fantasmas. Pode ser. Entretanto, como esquecer que a arte se faz essencialmente a partir de vivências? Como ignorar que a arte também é uma interpretação pessoal da vida, de suas alegrias e, substancialmente, de seus dramas? Não, não é terapia. É tocar na ferida latente e propor um diálogo sobre a condoída experiência da perda, pela qual todos, um dia, passaremos. E isso Dione conseguiu de maneira sublime.
*Paula Ramos é jornalista e doutora em História, Teoria e Critica de Arte/UFRGS - Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
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Texto publicado no CADERNO CULTURA – Jornal Zero Hora - ZH – Porto Alegre – 25 de setembro de 2004, referente a exposição Fragmentos Primordiais, 2004, Sala Especial - MAC-RS, Museu de Arte Contemporânea do Rio Grande do Sul.
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Texto publicado no CADERNO CULTURA – Jornal Zero Hora - ZH – Porto Alegre – 25 de setembro de 2004, referente a exposição Fragmentos Primordiais, 2004, Sala Especial - MAC-RS, Museu de Arte Contemporânea do Rio Grande do Sul.