Fruições (trans)lúcidas

Angélica de Moraes¹


                                                                                 "Tudo flui como um rio"
                                                                                        Heráclito de Éfeso



   O vidro é dos materiais mais densos de significado e dos mais onipresentes na história da humanidade. A ciência já nos provou: a vida nasceu do mar e somos um aglomerado de minerais que também existem nas estrelas e nas galáxias. Assim, talvez não haja material mais impregnado de nossa história e de nosso destino mutante de poeira de estrelas do que o milenar vidro. O vidro, esclarece a Física, habita estágio de matéria entre o sólido e o líquido. Suas moléculas estão muito próximas da fluidez da água. Elas são, podemos concluir, a coagulação do instante mutável que também somos.




   A uma velocidade tão lenta que não pode ser captada pelo olhar de uma única geração de humanos, o vidro escorre e empoça. Os vitrais das catedrais góticas do período medieval europeu gradualmente acumularam espessura maior na base do que no topo de suas superfícies translúcidas. Algo que aumenta nosso fascínio por essas delicadas e aéreas películas de luz/cor.

   Dione Veiga Vieira extraiu universos de significados de uma peça de vidro olhada com aquela atenção que ela costuma dedicar às coisas do cotidiano. Exatamente para arrancá-las do contingente e inscrevê-las no imanente da criação artística. Isso resultou no denso conjunto de obras desta exposição, que tem na fotografia, no vídeo e no objeto os meios ideais para nos fazer penetrar nas relações sígnicas que a artista estabeleceu e nos propõe experimentar.

   “Busco nessa proposta uma poética da tensão de forças contrárias, de formas e idéias em conflito: concreto/abstrato; presença/ausência; material/imaterial; positivo/negativo; preto/branco. Juntos, esses elementos acabam por construir uma nova tensão sempre em processo, um movimento infinito”, observa Dione.

   Tudo começou, conta a artista, quando ela encontrou, em uma pequena loja de bairro, muitos vasos azuis translúcidos, com as bordas abrindo-se em imprecisa flor. Feitos de modo artesanal, cada um apresentava características próprias, embora houvesse a intenção de alcançar a homogeneidade impessoal da produção em série. Essas deformidades mínimas provocaram a atenção de Dione, que logo aplicou-se a trabalhar o potencial de conceitos ali embutidos, para ressignificá-los.

   “Bruta flor do querer”, como canta Caetano Veloso? Os vasos azuis também remetem à ancestral simbologia do feminino. As primeiras obras realizadas por Dione com esses objetos, em 2008, quase se inscreviam na esfera do ready-made. A artista distribuía os pequenos vasos azuis em prateleiras brancas, preenchendo alguns deles com líquidos densos. Iguais e diferentes. A alusão poética ao corpo e ao orgânico é uma marca de sua trajetória, que ganha consistência crescente a partir do final dos anos 80, quando reside em Colônia (Alemanha,1989-1992), com ateliê oferecido pela associação Stadtkunst. Privilégio, aliás, que dá testemunho da qualidade de sua obra, há muito inscrita entre as de maior relevância nas artes visuais no Rio Grande do Sul.

   O filósofo grego Heráclito de Éfeso (séc V a.C.) afirmava a fluidez do mundo. O sociólogo polonês Zygmunt Bauman (1925) encontrou uma das características do século 21 no conceito de mundo líquido. Heráclito e Bauman nos vem à mente quando observamos o vídeo Solutilis. A bruta flor do querer tem sístole e diástole, como um coração. Ou seria um universo em expansão, recortado sobre o infinito negro do espaço sideral? Célula? Anêmona, contraindo-se e distendendo-se para deslocar-se no mar? A obra de Dione poetiza mundos, sejam eles de dimensões microscópicas ou macroscópicas, dentro ou fora de nosso corpo. Sua obra tem luz e lucidez.


                       [1] Angélica de Moraescrítica de artes visuais e curadora.
                             
                                                                                        São Paulo/2011


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Texto Publicado In Folder da exposição SOLUTILIS, 2011. Dione Veiga. DConcept - escritório de arte. SP. 


Texto publicado In Tecnoarte - Cultura e Estéticas DigitaisRevista Eletrônica, SP.  07/10/2011  -  8:42 

Índices de Ausência



*Angélica de Moraes



Um sentimento forte fisga, fere e faz sangrar todo o corpo desta exposição: a memória de uma ausência. Ela pende de ganchos que se projetam de prateleiras vazias. Nada mais está em seu lugar. Rasgada na carne dos dias, arrancada do cotidiano aderido aos móveis da casa, a ausência é gume afiado que espeta e dói. A um só tempo, uiva todos os tempos deixados, todos os tempos que já não são. É lâmina e corte, tudo misturado e fundo. Mordendo e mordendo. É oco. É abismo. É o impossível convívio na mesa sem superfície, na cadeira sem assento, na lembrança sem trégua, sem descanso. É aquela lágrima em suspensão, cavando caminhos ásperos e noturnos até desaguar no fel da manhã.

Esta mostra individual de Dione Veiga Vieira morde um naco de dor que, cedo ou tarde, todos vamos trincar nos dentes. Afinal, ensinam as escrituras bíblicas, do pó viemos e ao pó iremos retornar. Em latim, a certeza soa ainda mais inexorável: Pulvis es et in pulverem reverteris. Há raiva e dor, sim, muita. Ira contra o absurdo e o precário que ronda a existência. Não há espaço para um doce folhear de álbum de recordações. As lembranças são abrasivas e tocam nervos expostos. A casa está lotada de ausências que pousam em todos os objetos e se agarram com força nas roupas.

Embora tenha começado a construir sua identidade artística com uma produção nascida na pintura matérica, Dione alcançou maior densidade para sua arte quando transferiu seu campo de atuação da planaridade da tela para a tridimensionalidade da instalação e do objeto. Toda a rica investigação de texturas, existentes nos pigmentos terrosos e nos materiais carbonizados que se desmancham em nódoas indeléveis, foram potencializados e transferidos para instalações descarnadas e dramáticas.

Foi nesse diapasão que Dione realizou a tocante instalação sacra O Corpo Invisível, em 2002. Como bem observou Mário Röhnelt, nessa obra Dione revisita a tradição da pintura religiosa, expandindo-a da moldura do quadro para todo o espaço de uma capela, tomado como o próprio corpo de Cristo. Assim, “... o drama alastra-se pelo chão de sua própria casa, que também é seu corpo, que também é nosso corpo individual e social”. Ali, o sangue do martírio perpassa toda a cena, seja nas “veias” feitas de finos tubos plásticos, seja nas estopas encharcadas ou nas bacias. As feridas são lavadas, o sofrimento é tratado.

Na instalação seguinte - realizada em Pelotas em 2003 e denominada A Calcinação, a Unção e a Floração - Dione seculariza a temática da perda e a exorciza. É quando a artista encontra o percurso redentor na própria afirmação da força da vida e dos ciclos da natureza.

A instalação exibida em Pelotas chega agora ao MAC-RS como eixo de uma mostra individual mais extensa, em que a temática da perda adquire ainda maior tensão dramática. Lá como aqui, fica cada vez mais nítida a filiação de Dione à poesia visual, esse interstício entre artes plásticas e literatura.

Assim como o catalão Joan Brossa (1919-1998), a artista gaúcha constrói uma nova semântica para os objetos ao associá-los de modo aparentemente aleatório e incongruente. O que faz um ovo na exata intersecção de uma dobra de toalha de mesa? E a colher colocada cuidadosamente eqüidistante das bordas do tecido onde repousa? Há nessas propostas uma ossatura sólida, ancorada na genealogia surrealista.

A idéia do estranhamento, ou dépaysement, como bem anotou André Breton, é função essencial das operações surrealistas. Dione instala estranhamentos eficazes ao reunir coisas banais e imantá-las de novos significados. As coisas são elas próprias e algo mais. Esse algo brota do inconsciente para costurá-las de sentido. São sensações levíssimas, que guardamos sem saber bem porque, em compartimentos pequenos e quase inacessíveis. A racionalidade nos avisa que não há aí qualquer utilidade prática, mas quem diz que conseguimos descartar essas coisas de nós?

A exposição se desdobra assim, em memória e ausência. Há uma cuidadosa arqueologia de gavetas de guardados e uma insistência crispada na re-significação do cotidiano recortado no gume da perda. O tempo já vivido aflora nas coisas. É quando a colher remete a quem alimentava. O ovo compartilha com o ventre feminino as redondezas da gestação. A toalha convoca para o convívio da refeição em família. Na síntese visual, o poema se constrói tomando de empréstimo nossas próprias memórias.

A fotografia entra nesse conjunto para ajudar a compor a trama de malhas cada vez mais apertadas em que a artista nos coloca ao longo do percurso da mostra. As fotos também ressoam um vocabulário surreal, em que o manequim sinaliza o duplo, a presença fantasmal. O outro lado do espelho. Algo de contornos indefinidos, descorados, como a imagem em negativo que se esvai em branco no que antes era sólida presença em negro.

O vestido pendurado no trinco de uma janela entreaberta novamente estabelece a metáfora do corpo/casa e a redenção transportada no ar e na luz que entra. A aceitação da perda e o escoar do tempo cicatriza os cortes, areja a habitação e o estar no mundo. Restaura o ritual de por a mesa e compartilhar os alimentos. Finalmente o eterno repousa no trivial e infunde espessura a nossos passos. A ausência ganha os contornos e a fidelidade de nossa sombra.



*Angélica de Moraes é Crítica de Artes Visuais, curadora independente, jornalista cultural.


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Texto publicado no catálogo da exposição Fragmentos Primordiais, 2004. Sala Especial MAC-RS - Museu de Arte Contemporânea do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, RS.

Dione, a tradutora da alma

*Jones dos Santos





A arte contemporânea para alguns ou muitos desavisados pode até arranhar o bom senso (comum e incomum), além de nossos embasamentos estéticos e nossos sentidos. Digamos que a arte pulsa, estimula, e exige outros sentires. Em especial sentires desacostumados. Há também manifestações artísticas que não só arranham como esvaziam o sentir, por não acrescentarem ou mobilizarem sensações. O não-provocar nada também pode ser intencional na arte.

Mas a arte de Dione Veiga Vieira é um convite permanente a muitos sentires. Uma obra que não exige esforço para compreender, basta deixar-se e sentir. Entregar-se a todas possibilidades de sentir e ser conduzido a um universo que é comum a todos: Sentimentos genuínos. Dione faz arte com coisas de coisas. Ela rapta objetos de cenas para compor e recompor outras cenas e outros objetos antes talvez jamais imaginados. Estas cenas e objetos passam a ter um poder extraordinário de tornar inteligível o que antes poderia ser ininteligível ou até imperceptível pela simplicidade ou da insignificância do objeto. São objetos que compõem histórias traduzidas pela sensibilidade ímpar desta artista. Há objetos que deixam de ser objetos, para ser auras, energia pura de vivências humanas. Há cenas congeladas em suas obras, mas que não tem a frieza do gelo, mas tem a mansidão e aconchego do afeto. Basta que para isto estejamos abertos e vivos.

Dione atualmente usa objetos e fotografias em instalações para traduzir a alma. As almas são como são. Algumas têm asas; outras, desasadas. Mas todas estas almas por instante deixam de ser etéreas e têm forma concreta, assim como a existência humana. Tudo o que Dione produz está impregnado desse conteúdo humano e sensível. Em seus desenhos, pinturas e escrita, sua inquietude se percebe nas linhas, nas cores e na poética das palavras. Uma inquietude que denuncia que a vida só é vida quando há inquietudes. Sua sensibilidade é tão grandiosa que ela consegue intervir e alterar a leituras de objetos e coisas. As coisas deixam de ser coisas e passam ser sensações; sensações que denunciam que estamos vivos. Sua obra é atemporal e universal. Fala todas as línguas. Onde sua obra estiver essa se manifestará em seus amplos sentidos.

Há artistas que invadem nossa existência com ou sem a permissão. Alguns permanecem com a gente, nos tornando hospedeiros inquietos. A obra de Dione é assim; ao vê-la e senti-la, deixamos de ser os mesmos, pois inevitavelmente tem nossa história em um algum pigmento, rabiscos ou objeto. Se não tiver nada nosso nas obras de Dione, ouso dizer que algo não esta tão vivo dentro de nós.


* Psicólogo. Texto publicado em seu próprio blog, em 2007.