Mar purpúreo: no sentido
literal, mar de cor púrpura, de vibrante vermelho-escuro. Na acepção de antigos
poetas, mar denso e revolto, que abriga as forças e os seres míticos da terra. O
misterioso título estimula a imaginação do espectador, ao mesmo tempo em que
reforça o caráter simbólico da obra de Dione Veiga Vieira, artista que há mais
de três décadas vem discutindo a carga sensorial e evocativa da matéria.
Analisados em seus detalhes e em
conjunto, em suas formas, cores e texturas, esses artefatos se articulam em
diferentes camadas, propondo múltiplas interpretações e estando abertos ao
repertório e à fantasia de cada espectador. Seriam remanescentes de
experiências vividas por Dione? Estaríamos diante de objetos importantes em sua
história particular? A mesa metálica, em sua assepsia quase hospitalar, parece
desmentir essa hipótese. Há, sim, elementos caros à artista, que a acompanham
há anos, reportando-a a situações e a paisagens particulares; há também os de
forte potência simbólica, como a concha, ora associada ao peregrino, ora a rituais
de nascimento, morte e regeneração, ora às primitivas deusas, sobretudo
Afrodite, nascida de uma concha; e há os elementos que foram inseridos devido aos
feitios inusitados ou sugestivos, quase sempre de complementaridade: cheio e
vazio, masculino e feminino, preto e branco, quente e frio, conceitual e
sensorial. Dialogando com artistas como Louise Bourgeois (1911–2010), Eva Hesse
(1936–1970), Rebecca Horn (1944), Tunga (1952) e Nelson Felix (1954), Dione
propõe uma permanente tensão entre as coisas que vemos e reconhecemos, e as coisas
que presumimos que existem, mas que não se mostram. Repotencializando a
realidade, esses objetos e vocábulos funcionam como catalisadores daquilo que a
artista chama de “imagens primordiais”, signos que gravitam na esfera do alegórico
e do inconsciente, sugerindo ao espectador associações e experiências
corporais. Nesse rol, o ovo assume papel medular, tanto formal, como
simbolicamente.
Observemos, agora, as fotoperformances:
como que cumprindo um ritual solitário, feminino e muito antigo, Dione recolhe
esse ovo do mar. Traz consigo uma pequena e translúcida rede redonda, o passaguá. Ar e água o atravessam; metaforicamente,
nuvem e mar. Em algum momento, a nuvem se condensará, precipitando-se na forma
de chuva e, então, teremos mais uma vez a água. Ar-água, nuvem-mar, água-sal. Na
tradição hermética, devido aos seus efeitos curativos, o sal era interpretado
como a “luz coagulada do mundo”, o “sal da sabedoria”, o “fogo fulcral oculto”.
Imaculado pelo sal, o ovo que emerge desse mar
purpúreo – não por acaso, a praia de Punta Colorada, no Uruguai – é
concebido pela artista como uma espécie de bloco de tempo suspenso, sem começo
nem fim. Nele se corporifica o que já foi, o que é, o que está por vir. Dione
gosta de pensá-lo como uma metáfora de suas próprias obras de arte e, não
apenas isso, do processo de transmutação que ela empreende cada vez que insufla
novos significados aos objetos cotidianos, deslocando-os de seus usos mundanos para
novas configurações poéticas.
Observemos, por fim, o
vocabulário poético da artista: corpo, casa, fragmento, transformações e qualidades
orgânicas e sugestivas da matéria. São aspectos que atingem o intelecto pelo
caminho dos sentidos, provocando-nos através das conexões telúricas e essenciais.
Tais características estão presentes em vários trabalhos de Dione, cingidos por
alusões a eventos biológicos, químicos, físicos e metafísicos e cujos títulos imediatamente
evocam o viés fenomenológico: O Corpo
Invisível (2002), A Calcinação, a
Unção e a Floração (2003), Fragmentos
Primordiais (2004), O Nascimento de
Afrodite (2008), A Liquefação e a
Decantação (2008) Condensaciones y
Volatilidades (2010). Aliás, muitos dos objetos atualmente dispostos na
mesa-relicário também foram vistos nessas instalações, o que confere ao
trabalho o caráter de uma arqueologia pessoal, ao mesmo tempo em que escancara a
percepção de Dione acerca do espaço-tempo de suas obras: elas não se concluem,
não se fecham, mas se transformam continuamente, naquilo que, nas palavras da
própria artista, é um “[...] mar estranho e, ao mesmo tempo, familiar. O mar do
pensamento e da memória. Um mar que se liga ao corpo, e um corpo que se liga ao
mar. Continente único, orgânico. Presença que ora se define, ora se dissipa nos
objetos, nas imagens, nas palavras. E que os reaviva, os ressignifica a todo
momento”.
¹Paula
Ramos
Jornalista, crítica de arte,
professora-pesquisadora do Instituto de Artes da UFRGS
[1] Texto publicado do folder da exposição Do mar purpúreo, Goethe-Institut Porto Alegre, 2012.
[1] In TECNOARTE - São Paulo | SP
Canal Contemporâneo | RJ
[1] Texto publicado do folder da exposição Do mar purpúreo, Goethe-Institut Porto Alegre, 2012.
[1] In TECNOARTE - São Paulo | SP
Canal Contemporâneo | RJ