Do mar purpúreo

Paula Ramos¹


 Mar purpúreo: no sentido literal, mar de cor púrpura, de vibrante vermelho-escuro. Na acepção de antigos poetas, mar denso e revolto, que abriga as forças e os seres míticos da terra. O misterioso título estimula a imaginação do espectador, ao mesmo tempo em que reforça o caráter simbólico da obra de Dione Veiga Vieira, artista que há mais de três décadas vem discutindo a carga sensorial e evocativa da matéria.


Observemos o coração desta mostra: a mesa-relicário. Ali estão objetos variados, aparentemente sem qualquer conexão entre si. Afinal, o que faz uma espessa mecha de cabelos ao lado de turvas colheres? Ou o molde dentário de gesso, em meio a peças tão díspares como um livro, uma estrela-do-mar e utensílios de cozinha? Ou, ainda, a pequena boneca de biscuit, dividindo o espaço reservado de uma caixa de madeira com a fina areia do mar? Porcelanas brancas com resquícios de uso; a lamparina translúcida e intacta; a sugestão de um ninho vazio; pedras e conchas, reais e fabricadas; tecidos, cerdas e superfícies a reclamar nosso tato; a forma circular e constante estabelecendo ritmos; um ovo. Também palavras se manifestam, impressas em etiquetas, bilhetes e embalagens: tesouro, intenso, unidos, fragmento, casa, Minerva.

Analisados em seus detalhes e em conjunto, em suas formas, cores e texturas, esses artefatos se articulam em diferentes camadas, propondo múltiplas interpretações e estando abertos ao repertório e à fantasia de cada espectador. Seriam remanescentes de experiências vividas por Dione? Estaríamos diante de objetos importantes em sua história particular? A mesa metálica, em sua assepsia quase hospitalar, parece desmentir essa hipótese. Há, sim, elementos caros à artista, que a acompanham há anos, reportando-a a situações e a paisagens particulares; há também os de forte potência simbólica, como a concha, ora associada ao peregrino, ora a rituais de nascimento, morte e regeneração, ora às primitivas deusas, sobretudo Afrodite, nascida de uma concha; e há os elementos que foram inseridos devido aos feitios inusitados ou sugestivos, quase sempre de complementaridade: cheio e vazio, masculino e feminino, preto e branco, quente e frio, conceitual e sensorial. Dialogando com artistas como Louise Bourgeois (1911–2010), Eva Hesse (1936–1970), Rebecca Horn (1944), Tunga (1952) e Nelson Felix (1954), Dione propõe uma permanente tensão entre as coisas que vemos e reconhecemos, e as coisas que presumimos que existem, mas que não se mostram. Repotencializando a realidade, esses objetos e vocábulos funcionam como catalisadores daquilo que a artista chama de “imagens primordiais”, signos que gravitam na esfera do alegórico e do inconsciente, sugerindo ao espectador associações e experiências corporais. Nesse rol, o ovo assume papel medular, tanto formal, como simbolicamente.


Observemos, agora, as fotoperformances: como que cumprindo um ritual solitário, feminino e muito antigo, Dione recolhe esse ovo do mar. Traz consigo uma pequena e translúcida rede redonda, o passaguá. Ar e água o atravessam; metaforicamente, nuvem e mar. Em algum momento, a nuvem se condensará, precipitando-se na forma de chuva e, então, teremos mais uma vez a água. Ar-água, nuvem-mar, água-sal. Na tradição hermética, devido aos seus efeitos curativos, o sal era interpretado como a “luz coagulada do mundo”, o “sal da sabedoria”, o “fogo fulcral oculto”. Imaculado pelo sal, o ovo que emerge desse mar purpúreo – não por acaso, a praia de Punta Colorada, no Uruguai – é concebido pela artista como uma espécie de bloco de tempo suspenso, sem começo nem fim. Nele se corporifica o que já foi, o que é, o que está por vir. Dione gosta de pensá-lo como uma metáfora de suas próprias obras de arte e, não apenas isso, do processo de transmutação que ela empreende cada vez que insufla novos significados aos objetos cotidianos, deslocando-os de seus usos mundanos para novas configurações poéticas.




Observemos, por fim, o vocabulário poético da artista: corpo, casa, fragmento, transformações e qualidades orgânicas e sugestivas da matéria. São aspectos que atingem o intelecto pelo caminho dos sentidos, provocando-nos através das conexões telúricas e essenciais. Tais características estão presentes em vários trabalhos de Dione, cingidos por alusões a eventos biológicos, químicos, físicos e metafísicos e cujos títulos imediatamente evocam o viés fenomenológico: O Corpo Invisível (2002), A Calcinação, a Unção e a Floração (2003), Fragmentos Primordiais (2004), O Nascimento de Afrodite (2008), A Liquefação e a Decantação (2008) Condensaciones y Volatilidades (2010). Aliás, muitos dos objetos atualmente dispostos na mesa-relicário também foram vistos nessas instalações, o que confere ao trabalho o caráter de uma arqueologia pessoal, ao mesmo tempo em que escancara a percepção de Dione acerca do espaço-tempo de suas obras: elas não se concluem, não se fecham, mas se transformam continuamente, naquilo que, nas palavras da própria artista, é um “[...] mar estranho e, ao mesmo tempo, familiar. O mar do pensamento e da memória. Um mar que se liga ao corpo, e um corpo que se liga ao mar. Continente único, orgânico. Presença que ora se define, ora se dissipa nos objetos, nas imagens, nas palavras. E que os reaviva, os ressignifica a todo momento”.

¹Paula Ramos
Jornalista, crítica de arte, professora-pesquisadora do Instituto de Artes da UFRGS

[1] Texto publicado do folder da exposição Do mar purpúreo, Goethe-Institut Porto Alegre, 2012.

[1] In TECNOARTE - São Paulo | SP

Canal Contemporâneo | RJ