MELANCOLIA

Melancolia.
Essa foi a primeira palavra que surgiu em minha mente, e ecoou constantemente durante todo o percurso da exposição. Junto a ela, a sensação cada vez mais forte de estar invadindo um local proibido, que, embora abandonado, há anos parece ter-se conservado da mesma maneira, como uma caixa de relíquias pessoais que vão sendo desgastadas com o tempo, mas que se mantêm. Permanecem ali, imóveis, intocáveis, austeras, como testemunhas de uma vida. A vida de uma mulher: seu vestido, o vestido de suas filhas, seu cuidado com os detalhes da decoração da casa, os lençóis, as cortinas, pequenas caixas para guardar objetos queridos, fotografias, tule, espelhos – muitos espelhos, o cuidado ao pôr a mesa, com os pratos bem dispostos em uma montagem quase ritual. Todos pequenos indícios de que um dia a vida humana esteve presente, com o vigor da juventude. Como lembra a própria artista, “em todos os detalhes do território-casa há uma surpreendente avalanche de almas”, e essas almas parecem nos envolver intensamente, dividindo com o visitante as experiências e a saudade.

De fato, é impossível descrever as sensações que se tem ao ingressar no mundo criado por Dione. Ele ressoa em cada espectador de uma forma, pela subjetividade e profundidade com a qual a artista simboliza a passagem do tempo. A presença dos objetos – em oposição à ausência de seus donos – corroídos pelos dias, tomados pela poeira e pela erva sugerem fortemente a existência de um passado que não se quer esquecer. Da mesma forma, os elementos conotam um espírito feminino, no qual a sensibilidade, a delicadeza, o romantismo e o subjetivo imperam, podendo ser percebidos em diversos ambientes da mostra, desde os vestidos até a caixinha de lembranças. O tecido branco, leve e fluido, que divide uma sala em pequenos nichos (quartos) também se relaciona com o cuidado delicado de uma moça, e pode denotar a leveza de uma vida sem mistérios assim como a dor do recolhimento solitário das salas de hospital. Dentro desses nichos, uma cadeira sem assento, suporte para ganchos pendurados, um cabide que eleva um pequeno vestido de batizado com o nome de duas crianças amorosamente bordados, outro com um provável vestido de noivado, uma mesa que armazena talheres. Tudo envolto pelo forte odor da naftalina que protege dos insetos. Em outra sala (se podemos chamar assim), livros muito antigos, garrafas envelhecidas, uma colher repousando sobre um tecido dobrado e um ovo, sobre suporte semelhante. Estantes vazias, espelhos que já não refletem mais, a insistente presença de uma camisa pendurada em um cabide. Todos os recantos dessa obra/casa emanam a recordação daquilo que se foi.

Muito bem montada, o grande número de objetos da exposição não se perdeu dentro do espaço amplo da galeria. Ao contrário, parece ter se adequado perfeitamente ao ambiente espaçoso e com um elevado pé-direito: tem-se uma verdadeira intimidade com os elementos. Em momento algum conseguimos fugir da lembrança de um passado, como se ficássemos presos dentro do mundo de ausências proposto por Dione, que revelou ter realizado quase uma prece, ao fechar-se sozinha naquele espaço para elaborar sua criação.

Da montagem às sensações finais transmitidas ao espectador, a obra "Fragmentos Primordiais" carrega intensamente os termos “memória” e “feminino”, assim relacionando Dione com duas artistas contemporâneas suas: a francesa Sophie Calle e a brasileira Beth Moyses. Esta atualmente expõe, na Galeria de Arte do Sesi, em São Paulo, uma pequena obra na qual uma trança repousa sobre uma cama de madeira, coberta pelo tule esbranquiçado bordado com rosas. Esse conjunto, suspenso no ar por fios de nylon, traz à tona o amadurecimento, “o fim da juventude, a morte da inocência”.[1] Aquela, por sua vez, utiliza histórias de vida para retratar a passagem do tempo, o esquecimento e o amor perdido. Em recente exposição retrospectiva[2] , Sophie apresentou uma obra inédita na qual o sofrimento de um rompimento amoroso vai sendo obscurecido pelo dia-a-dia, na medida em que o tempo avança. Cada uma delas, a seu modo, remete à melancolia, à dolorosa consciência de que a vida se esvai e à negação do envelhecimento, sob o ponto de vista feminino.

No caso de Dione, especialmente, apesar do teor melancólico e denso, é possível vislumbrar a esperança da renovação. Ao perder a juventude, adquire-se a sabedoria, retratada pela artista nas ervas que invadem o espaço um dia dominado pelo homem. A presença humana vai sendo apagada e substituída pela natureza, que volta a seu lugar: é a vida que se renova após a morte.


 
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Débora Bertol - outubro/2004


Notas:

[1] Kátia Canton, catálogo da mostra Natureza Morta/ Still Life. São Paulo: MAC-USP/SESI, 2004, p.47

[2] M’as-tu vue. Paris, Centre Pompidou, 19 de novembro de 2003 a15 de março de 2004.

Memórias de uma Ausência

*Ana Zavadil



Tempo no vazio

No vestígio

Na continuação ...

O olhar do tempo

E o nosso tempo de olhar

O vazio, o silêncio

Tempo do silêncio

E o silêncio do tempo.

Uma ausência, uma passagem

Espaços vazios

Vazios cheios de espaço

E de tempo ...

Memórias construídas de fragmentos

Fragmentos que indicam a passagem do tempo

Tempo que sulca caminhos no coração

Perda,

Memórias,

Ausência,

Renovação ...


O tempo parece ser o grande instaurador da obra de Dione Veiga Vieira, este tempo que a tudo consome e traz à tona a condição impermanente do ser humano, nos faz refletir sobre o que se poderia pinçar desse fluxo intermitente senão às memórias. Os vestígios desse tempo deixado nos objetos que pertenceram a alguém e hoje, invadidos pelo silêncio, vazios e imóveis, onde as essências são apenas lembranças, estão todos ali pontuando uma certa ambigüidade, as suas presenças nada mais são do que as memórias de uma ausência.

Porque a obra de Dione causa tanto impacto, atingindo o espectador em cheio, porque ela incomoda?

Ao percorrer a grandiosidade do espaço de exposição, o trajeto nos instiga à reflexão constantemente. Nas duas paredes grandes que levam ao fundo, de um lado, estão colocadas imagens tantas vezes repetidas da fotografia de um mesmo vestido vazio, todas em molduras pretas de madeira, onde em cada uma delas a imagem é manipulada digitalmente, contrastando com a sua montagem simples. Nossa reação é associar de maneira inelutável com a ausência de alguém. No outro lado, numa linha paralela as fotografias do vestido vazio, na mesma disposição, repetem-se muitos espelhos, eles são pequenos, e também emoldurados em preto. Conforme caminhamos, vamos vendo a nossa imagem refletida, este é mais um momento para se pensar na existência. Não é mais a obra de Dione que estamos vendo, mas a nós mesmos e a nossa própria fragilidade.

No centro do espaço a imensidão de um tecido branco sobre o chão, cheio de marcas do tempo e das cinzas que trazem de volta outros tempos: “após as cinzas de todos os tempos passados terem sido espargidas pelo vento que entrou pela porta descuidadamente aberta, parece que uma paisagem árida entrou dentro dos olhos de todos para sempre”. (Vieira, 2003). As palavras de Dione são certeiras e nos tocam profundamente.

Nossa sensibilidade é posta à prova ao entrarmos na parte mais “íntima da exposição”, locais pequenos e separados por cortinas brancas, são como quartos que resgatam a história de vidas passadas: são cadeiras sem assento, mesas sem tampos, vestidos vazios, tudo ali fala de uma ausência muito profunda. Algo muito forte se apodera de quem ali entra; a nossa condição de transitoriedade, esse impacto nos chega sem muito esforço, somos seres temporais e esse tempo impalpável nos mostra esta realidade. Somos atingidos no que de mais frágil possuímos, na nossa única certeza: a morte. Nesse momento realmente conseguimos entrar na obra da artista, a leveza do ambiente, porém, dotado de uma grande carga de significados, a desmaterialização da vida que se faz ali presente, nos incomoda pela irreversibilidade que sabemos existir no tempo.

As prateleiras vazias, as caixas de guardados que compõem a memória, os ganchos vazios de teor agressivo, assim percorremos este espaço perdidos nos próprios pensamentos. A última parada: uma mesa vazia, a toalha contendo as marcas dos pratos e copos, o resto tomado pelas cinzas e pelas ervas que se alastram ocupando os espaços. E tudo nos é dado a crer que existe um ciclo de vida onde a natureza retoma o seu lugar, o lugar de alguém.

Dione consegue re-significar tantos objetos banais, “as coisas são elas próprias e algo mais. Esse algo brota do inconsciente para costurá-las de sentido”. (Moraes, 2004) Muitas são as mensagens que recebemos, a colher, o ovo, a toalha, todos objetos que têm aqui um novo significado relacionado ao alimento, ao útero que guarda a vida, à refeição em família.Todo o conjunto continua respondendo a mesma temática: a da perda, porém com uma abertura para a renovação.

O espaço todo dialoga, o contraste do branco e do preto com algumas inserções do sépia e de azul já trazem uma certa unidade, indicam que todos os fragmentos que narram esta belíssima exposição falam dos vestígios de uma memória através do tempo. É o presente dialogando com o passado através de tantos objetos. Paulo Gomes, na sua Dissertação de Mestrado fala sobre o presente contínuo, como um desejo:

“onde os objetos, as idéias e emoções que eles contém sejam independentes do seu tempo de existência. [...] Uma impossibilidade de localização temporal, mas uma possibilidade de existência independente das cronologias. Como as memórias, talvez...[...] mas o que o tempo pode fazer com os objetos e com as memórias das pessoas e como esse mesmo tempo pode ficar retido em um fragmento e vir à tona em toda a sua potencialidade ao ser processado ou apresentado enquanto obra.” (1998,p.39)

Na obra de Dione os fragmentos e os objetos trazem essas características, não existe um tempo para as memórias, mas, existe um tempo para as ausências, e cada fragmento e objeto têm a potencialidade de fazer aflorar os sentidos de quem os vê, dependendo da maneira como cada um o sente. A idéia de passagem que fica desses fragmentos, que falam de perda, está na idéia de que cada pedaço de memória vai formar um todo e constituir uma nova existência. Dando uma outra significação aos objetos ela consegue transformá-los em signos de dor e de ausência. Ela modifica o lugar da exposição tornando-o uma casa devastada pelas intempéries onde restaram as cinzas e deixa transpirar sutilmente que destas cinzas renascerá uma nova vida.

Dione Veiga Vieira consegue através da sua obra passar sentimentos muito fortes aos visitantes, suscitando uma reflexão da presença do ser no mundo. O seu trabalho é instigante, passível de uma análise profunda, de modo que as partes possam ser amarradas para a compreensão do todo, onde a real significação é portadora de uma beleza sem máscaras e ilusões.

*Ana Zavadil – Bacharel em Pintura pela UFRGS-2002, Bacharel em História, Teoria e Crítica de Arte pela UFRGS-2004.

BIBLIOGRAFIA

1 GOMES, Paulo César Ribeiro. Meias Verdades e Mentiras Inteiras: uma poética com fragmentos. Porto Alegre: UFRGS,135 p. Dissertação (Mestrado)-PPGAVI, Instituto de Artes, Universidade Federal do Rio Grande do Sul,Porto Alegre, 1998.


2 MORAIS, Angélica de. Índices de Ausências. In: Fragmentos Primordiais. Porto Alegre: Instituto Estadual de Artes Visuais/Museu de Arte Contemporânea do Rio Grande do Sul, 2004. Catálogo de exposição.

3 VIEIRA, Dione Veiga. A Calcinação, a Unção e a Floração. In: Dione Veiga Vieira. Pelotas: Museu de Arte Leopoldo Gotuzzo, 2003. Catálogo de exposição.

ESTADOS DE CORPO

Ronald Augusto



(...) Ante-sala e Sala de Recepção de Dione Veiga Vieira: a artista demarca um espaço sacrificial para o corpóreo; o elogio erótico e necrópsico da carne. No entanto, resta um ar espiritual aos instrumentos que promovem o desmanche do corpo animal. Um mundo invisível na escureza dos objetos em negro, iluminados parcialmente pelo prateado das peças metálicas: ganchos, afiador, talheres, etc. O onirismo planificado do não-boi encarnado na metonímia de um par de chifres imensos, priápicos, que fazem, por sua vez, o contraponto com as meias femininas, preenchidas com pequenas peças de vidro: pornografemas, desejo em secções. O não-boi: a mesa em brilhante pelagem negra, macia; o assentamento matemático e surreal de coisa quadrúpede. O conjunto projetado por Dione alude a salas perversas que em sua árdua beleza e em sua precisão à maneira bauhaus, parecem aguardar o peso, a gravidade de corpos em postas, em pêndulos, dependuradas em meias, em pequenos ganchos argênteos, prosaicos e delicados, não obstante o torturante a que fazem alusão. Paixão ou mortificação dos significados. Mas, por outro lado, esses ganchos também estão ali como que à espera de sentidos, significações. Neles o fruidor (agora, essa palavra beira a condição de compósito verbal e suporta uma acepção quase intolerável) poderá dependurar, se assim o desejar, sua vontade de interpretação. A ausência da coisa demanda uma enfiada de nomes possíveis que lutam entre si na tentativa de substituí-la.

Ronald Augusto em Estados de Corpo, 2008.

Dos perceptos, dos afectos, do mito, das sensações, dos objetos...


Maria Cristina Ferrony

 

Dione Veiga Vieira é artista plástica com formação no curso de Letras pela PUCRS. Possui especialização em Artes Plásticas: Suportes Científicos e Práxis. De 1989 a 1992 viveu em Colônia na Alemanha onde manteve Atelier de Arte na associação "STADTKUNST E.V. Köln". Vive atualmente em Porto Alegre onde trabalha com instalações, objetos, esculturas, fotografia, desenho e também literatura. Atualmente também se dedica à curadoria de mostras de arte e à produção de textos de arte. Já realizou diversas exposições individuais destacando-se "A Liquefação e a Decantação” de 2008, na Galeria Gestual em Porto Alegre, "Fragmentos Primordiais" de 2004, na Sala Especial do MAC/RS, "A Calcinação, a Unção e a Floração" de 2002 no MALG em Pelotas e "Primal" de 2001 na Pinacoteca da FEEVALE, Novo Hamburgo. A obra “O Nascimento de Afrodite - Sobre a Origem e Criação foi apresentada na mostra “Casa Fechada” na Casa de Cultura Mário Quintana, com obras de mais seis artistas que trabalham a temática do corpo como metáfora da casa e vice-versa.


O Nascimento de Afrodite - Sobre a Origem e Criação” trata-se de uma escultura-instalação, composta por um artefato oval de cerâmica, um tecido de algodão tingido com argila e dobrado, uma banqueta de madeira, um pêndulo de chumbo, uma esponja vegetal embebida em argila, uma tigela em cerâmica com água e argila e uma Fotografia. A imagem da fotografia é o resultado de uma sobreposição de imagens digitais. Essa obra não se vincula particularmente a uma corrente artística, mas, segundo a definição de alguns teóricos sobre a poética da artista, estabelece uma correspondência com a arte conceitual e também com a arte matérica, ou pintura matérica[1], ambos movimentos importantes da arte contemporânea que se desenvolveram marcadamente entre as décadas de 60 e 70 e que hoje repercutem na obra de alguns artistas trazendo seu importante legado incorporado aos atravessamentos próprios da atualidade. Dione parte da utilização de objetos praticamente “in natura”, objetos perfeitamente reconhecíveis na sua aparição, o oposto da imagem abstrata a não ser pela fotografia em que as imagens digitais sobrepostas confundem até um certo ponto a legibilidade do objeto.

Essa obra já não mais existe. Apenas a foto que compunha a obra restou como o último vestígio material do conjunto. A natureza prosaica dos materiais utilizados na sua composição determina a efemeridade como parte de seu processo e dá visibilidade aos fenômenos e alterações químicas da matéria, pois que é frágil. “...a duração do material é muito relativa, a sensação é de uma outra ordem, e possui uma existência em si enquanto o material dura” (DELEUZE, 2007, p. 248). Os registros fotográficos, realizados quando a obra esteve exposta, reforçam a idéia da assepsia cerimoniosa dessa composição, um bloco de sensações, um composto de perceptos e afectos, guardado em suspenso.

"O que se conserva, de direito, não é o material, que constitui somente a condição de fato; mas, enquanto é preenchida esta condição (enquanto a tela, a cor ou a pedra não virem pó), o que se conserva em si é o percepto ou o afecto. Mesmo se o material só durasse alguns segundos, daria à sensação o poder de existir e de se conservar em si, na eternidade que coexiste com esta curta duração" (DELEUZE, 2007, p. 216).

Um assalto ao nosso bem arranjado senso estético, “O Nascimento de Afrodite - Sobre a Origem e Criação” é como que uma educação do olhar que se obriga a lhe perceber como algo muito belo. Essa composição visual é de uma peculiar harmonia em que nada parece exceder nem perturbar o equilíbrio do conjunto. À sensação de fragilidade na apreensão do pequeno objeto (o ovo) que se acomoda na superfície aparentemente instável do tecido, contrasta uma sensação de acatamento e justa medida por seu imperioso e solene estado a nos capturar em veneração como que diante de um objeto sagrado, nobre e poderoso. Quanto tecido em barro será necessário para suportar o peso da criação? Quanto nos revela em “possíveis” esse objeto hermético – o ovo? Ao escorregar nosso olhar pelas carnes que o sustentam se confirmam as dores e os suplícios da inexorabilidade do nascimento, a violência dos órgãos na conformação do novo corpo. Absoluto, perfeito, o ovo se impõe como a obra de arte mesma, nunca um fim, mas algo a tornar-se outro. Também um “Corpo de Passagem”? Um devir. Segundo Deleuze, o ovo é pura sensação, é corpo sem órgãos[2], “campo de imanência do desejo, o plano de consistência própria do desejo (ali onde o desejo se define como processo de produção, sem referência a qualquer instância exterior, falta que viria torná-lo oco, prazer que viria preenchê-lo)” (DELEUZE, 2004, p. 15). É o grau zero, um nada que é tudo, onde tudo pode vir a ser.

Essa obra, intensamente fecunda na produção de sentidos, traz no título sua alusão ao mito, mais propriamente ao mito da beleza. Na exaltação do mito, o momento mágico da sua criação, o paroxismo do belo. A qualidade peculiarmente estética de sua composição, portanto, é asseverada pelo mito. Afrodite, na mitologia grega, a deusa do amor, da beleza corporal e do sexo. O momento sublime de seu nascimento é uma passagem obscura da mitologia em que diferentes versões o descrevem[3], e ficamos a sondar, sobre essa versão apresentada por Veiga Vieira. Parecendo recusar peremptoriamente uma deificação clássica, o mito se revela apesar disso e ostensivamente, na escolha por materiais carregados de eflúvios indicativos. A começar pelo “ovo” e sua associação primeira à origem, ao nascimento, à própria vida manifesta na máxima perfeição da forma; e o que o acomoda, as peles do elemento terroso que na cultura judaico-cristã também remete à criação, o homem moldado em barro por Deus. Se à obra colarmos nosso entendimento matérico do que seja o nascimento, a carne, a secção e o sangue, a natureza animal desse acontecimento irrompe no protuberante tecido pintado de argila. A banqueta revela sua condição prestimosa, como a superfície de amparo que sustenta a carne, o altar que a recebe; o pêndulo demarca o centro, o vetor, e promove a unção da esponja vegetal com o continente do receptáculo configurado na tigela, a água argilosa contida na concha de Afrodite. De onde somos levados, através desse recuo de entidades, a vislumbrar aí o momento da fecundação? No ósculo em suspenso, a união entre as carnes.

Até aqui, nada a gerar estranhamento, nada a forçar interpretações numa escala mais ampla de especulação. Nesse movimento apenas descrevo o que se dá a ver e o digo à minha maneira, ou à maneira de que a mim se acerca. Mas há um entendimento inato das coisas, dos objetos que valem por si mesmos como puros perceptos. Não há como nos desvincularmos dos sentimentos ulteriores de que somos constituídos, que não estão nas lembranças, numa nostalgia fixada em um lugar ou tempo definidos, mas que submergem em espasmos na presença de determinados indicadores pelos quais somos invadidos. Como em Proust[4], os objetos utilizados nessa obra não nos dizem nada que evada de sua condição enquanto objetos, mas são continentes férteis desses sentimentos inexplicáveis. Objetos como seres de sensação, entes vivos inorgânicos compostos de carne. A composição de um corpo-casa.
"Eis tudo que é preciso para fazer arte: uma casa, posturas, cores e cantos – sob a condição de que tudo isso se abra e se lance sobre um vetor louco, como uma vassoura de bruxa, uma linha de universo ou de desterritorialização" (DELEUZE, 2007, p.238).

O erotismo na obra de Veiga Vieira é sublimado, mas é afecto. Não se lança à graça de uma interpretação imediata, mas é ser de sensação, contido no conjunto da obra em cada elemento que a compõe. Aqui a “idéia” de erotismo não está contida na matéria corpórea da obra, mas esta a sustenta na medida que os seus componentes a ela se reportam, por isso talvez a suposição, por parte de alguns críticos, de que seja uma obra de arte conceitual.

Nessa análise da obra de Dione, propositalmente não apontei até agora, como na análise anterior, elementos que possam ser compreendidos como prescritivos numa possível construção de saberes, intencionando, com esse procedimento, oportunizar ao leitor uma experiência errante em que lhe seja permitido criar afectos a partir de seus próprios conhecimentos que haja coletado sobre a conceituação de arte. Assim, e apenas atentando para o entendimento da obra como um potencial disparador de sentidos, por suas atribuições plásticas, espera-se que diante de uma mínima apresentação de uma obra com características tão impessoais e inapreensíveis como essa obra de Veiga Vieira, uma movimentação sensível profícua seja realizável.

Um encontro, acontecimento. Os elementos mais reconhecíveis da arte contemporânea, o humor, a ironia, o inacabado, o atraso, o insólito e o erótico, portanto, não se apresentam nessa obra a não ser como entes ocultos, mas o “invisível”, que também se traduz como “pensamento”, outro forte elemento partícipe a compor nessa esfera, se apresenta como a assegurar o estatuto de “O Nascimento de Afrodite - Sobre a Origem e Criação” como uma incontestável obra de arte contemporânea.

Afora os elementos que não se dão a ver claramente, brotam algumas questões específicas da arte contemporânea no encontro com essa obra, como o rompimento manifesto em relação à “pureza dos meios”, um preceito característico da arte moderna. Não é pintura, no entanto há pintura; não é escultura, no entanto se expande no tridimensional; há fotografia, mas esta faz parte do conjunto, e sem ele passa a significar outra coisa. É a transposição, portanto, dos limites da ação estética, quando o campo desta ação se alarga na adoção de outros meios, outros espaços, outros materiais, outras possibilidades, enfim.

A impessoalidade dessa obra, também, a jogar com a questão da identidade das coisas, que não são mais o que são. Não à maneira da arte Pop que buscava com a estereotipação das imagens pelos mass media expor o caráter frágil do objeto e do sujeito, mas talvez mais à maneira de Duchamp. O ovo, o barro, o tecido, o banco, a esponja, a tigela, a fotografia, são outras coisas nessa obra e é claro que ainda os percebemos como os objetos que são, pois que não foram transgredidos na sua forma. Mas são outras coisas... da ordem das sensações, entrelaçados na composição de uma nova força.

Os materiais foram reunidos e combinados de maneira que pudessem comunicar suas propriedades imanentes. Falam de si ao espectador, suas memórias retidas, tensões, mistérios e vulnerabilidade pertinentes a um corpo, mas é no fora que encontram-se revelados os seus humores, a sua essência, enquanto sensações.

... "Quando uma sensação se produz, ela não é situável no mapa de sentidos de que dispomos e, por isso, nos estranha. Para nos livrarmos do mal-estar causado por esse estranhamento nos vemos forçados a “decifrar” a sensação desconhecida, o que faz dela um signo. Ora a decifração que tal signo exige não tem nada a ver com “explicar” ou “interpretar”, mas com “inventar” um sentido que o torne visível e o integre ao mapa da existência vigente, operando nele uma transmutação. Podemos dizer que o trabalho do artista (a obra de arte) consiste exatamente nessa decifração das sensações. É talvez nesse sentido que se pode entender o que quis dizer Cézanne com sua idéia de que é a sensação o que ele pinta" (ROLNIK, 2007, p.3).


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NOTAS:

[1] Arte matérica ou pintura matérica surge na Europa no período pós-guerra. Arte corpórea com a tônica nas qualidades do material. Tem influência da poesia e da alquimia, donde os processos mentais e os processos do material são o axioma dessa tendência que busca explorar “o que nos diz o material?” De características abstratas mistura materiais não pictóricos considerados pobres como, argila, feltro, látex, estopa. Alguns artistas matéricos: Yves Klein, Anselm Kiefer, Jannis Kounellis, Joseph Beuys.

[2] CsO – Termo nomeado por Antonin Artaud em seus escritos e adotado por Deleuze & Guattari para dizer do estado de um corpo “antes” da representação orgânica, mas é um corpo pleno de intensidades, “limiares ou níveis” (DELEUZE, 2007, p. 51). “O CsO é o ovo. Mas o ovo não é regressivo: ao contrário, ele é contemporâneo por excelência, carrega-se sempre consigo, como seu próprio meio de experimentação, seu meio associado. O ovo é o meio de intensidade pura, o espatium e não a extensio, a intensidade Zero como princípio de produção” (DELEUZE, 2004, p. 27).

[3] A deusa Afrodite, da mitologia grega nasceu na ilha de Chipre. Conforme a versão de Homero e Eurípedes, era filha de Zeus e Dione, uma oceânide e a deusa das Ninfas. Na versão de Hesíodo, a mais antiga, Afrodite nasce de uma espuma formada em torno dos órgãos genitais de Urano que haviam sido lançados ao mar após a mutilação realizada por seu filho Cronos. As duas versões se confundem, na medida em que ambas envolvem Tálassa, a deusa primordial do mar, que após a fecundação com o sêmen de Urano teria gerado Dione numa das versões e Afrodite, na versão mais admitida.

[4] “O mesmo se dá com o nosso passado. É trabalho baldado procurar evoca-lo, todos os esforços de nossa inteligência serão inúteis. Está escondido, fora de seu domínio e de seu alcance, em algum objeto material (na sensação que esse objeto material nos daria), que estamos longe de suspeitar. Tal objeto depende apenas do acaso que o reencontremos antes de morrer, ou que o não encontremos jamais” (PROUST, 2002, p. 51).
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Texto (2009) publicado In "Revista Internacional Estúdio 3 – Artistas Sobre Outras Obras", Faculdade de Belas Artes, Universidade de Lisboa, Portugal, 2011.