Icléia Borsa Cattani ¹
Vestígios: não resultantes de uma catástrofe ou de uma lenta ação do tempo, mas criados por uma artista.
Toda a nossa vida é marcada por vestígios, que recebemos do mundo à volta ou que nós mesmos produzimos, involuntariamente, durante nossas trajetórias de vida. Uma fotografia cuja origem se perdeu, um objeto que guardamos durante anos por razões evidentes ou obscuras, fragmentos do mundo que recolhemos, como conchas, seixos, folhas secas, e ainda, pequenos indícios das pessoas amadas, presentes ou que se foram, como, um lenço, uma louça de uso pessoal, tantos outros...
Fragmentos de vidas, de um transcurso temporal, que permanecem como vestígios de nossas origens, de nossas raízes pessoais, familiares, étnicas, culturais e, num sentido mais amplo, de testemunhas de um possível sentido da vida.
Na arte, esses elementos são resignificados, adquirindo um sentido poético que vai muito além de sua simples origem de testemunhos, de talismãs ou de fetiches. Eles congregam-se através de um fio condutor que os aprofunda e os engrandece.
Fogo: no trabalho atual de Dione Veiga Vieira, o fio condutor é o fogo. O fogo é o que une os fragmentos, transmutando-os em vestígios com significados comuns. A artista impregnou-se das análises de Bachelard em Psicanálise do Fogo, sublimando os enigmas de sua história pessoal através de suas obras. O fogo, de elemento fundador do mistério maior de suas origens, transformou-se em matéria fundante de sua poética, isto é, de sua escolha dos materiais, de seu processo de criação e da instauração das obras elas mesmas. O fogo controlado, em oposição ao fogo destruidor que aniquila. O fogo positivo, que pode transformar-se em fertilizante do qual germinam novas vidas. E, entre ambos, a unção, o ato da artista de purificar os vestígios, atribuindo-lhes novas vidas enquanto elementos estéticos, enquanto arte. O fogo de Prometeu, que serve para criar. O artista como demiurgo que transforma os fragmentos numa totalidade plena de sentido, por sua ação sobre a matéria.
O fogo purifica. A matéria calcinada é outra em relação à original. Ungir a matéria queimada, com óleo, como num batismo ou na extrema-unção, é purificá-la duas vezes. Mas materializa também, o gesto demiúrgico do artista de dar vida a "pseudo-pessoas", que são as obras, segundo o conceito de René Passeron. Esperar que, dessas "pseudo-pessoas", venha a floração, é expressar o desejo que elas cumpram o destino humano, que é florir e frutificar, antes de fenecer. Todavia, sendo as obras de arte feitas para uma vida muito mais longa do que a nossa, o processo de floração pode ser permanente, atravessar os séculos. Através dele, a artista cria uma outra vida para os fragmentos de sua história: purificados de sua temporalidade e de sua circunstancialidade, eles florescem para sempre no âmbito das representações simbólicas.
Superfície: Dione sempre foi sensível à superfície das coisas, no mundo e em sua obra. Superfícies lisas, rugosas, ásperas, coexistiam em suas pinturas dos anos 80, compondo a pele dos trabalhos. Mas, não nos enganemos: como afirmou Paul Valéry, "o mais profundo, é a pele". Em nossa pele, inscrevem-se as sensações e os sentimentos mais arcaicos e mais profundos. O amor e o ódio nos são ensinados, sobretudo, através da pele: as carícias ou os maus-tratos, criam o mapa de nossas relações com o mundo.
Em trabalhos de dois anos atrás, Dione realizou furos: a superfície transpassada, como num ferimento, desvendava o interior. Não por coincidência, a artista estava, naquele momento, criando obras tridimensionais, semelhantes a pedaços de corpos, animais ou humanos: muitos lembravam carcaças nas quais a carne se expunha, despida do seu invólucro.
Nos trabalhos atuais, o fogo define a superfície das coisas. Ele modifica a matéria ao calciná-la, como a madeira transformada em carvão, mas também deposita, mesmo sobre as superfícies intocadas, uma camada de cinzas, como um véu. Poucos objetos escapam ilesos dessa ação, que contamina num negror ou em tons de cinza de tal modo, que todas as formas e todas as superfícies se confundem. O óleo que a artista passa não limpa os objetos, antes fixa para sempre a fuligem, acentuando as marcas e as cicatrizes provocadas pela ação do fogo e do tempo.
Objetos: os objetos são de duas ordens, nas instalações propostas. Primeiramente, os que são da ordem dos vestígios: cabelos, órgãos internos em parafina (comprados em lojas de ex-votos), carvão, espelhos, um "cordão umbilical" feito com arame e estopa. Por outro lado, aqueles que servem para conter, organizar ou expor: caixas e bacias, prateleiras, bancos. Todos esses objetos remetem ao corpo e ao universo doméstico da casa, estabelecendo um paralelismo entre ambos, que a artista enfatiza em seus textos. A casa como nosso continente, nosso segundo corpo, útero substitutivo que recria a ilusão da segurança e da completude perdidas. E isso nos remete a outro significado do fogo: em francês, a mesma palavra, foyer, designa o lar e o antigo centro de calor da casa, onde o fogo devia ser mantido permanentemente aceso em tempos passados, para garantir as condições de sobrevivência dos moradores: o calor e o alimento. Normalmente, eram as mulheres da casa as responsáveis pela manutenção desse fogo, durante as vinte e quatro horas do dia. As funções biológicas femininas, de abrigar e nutrir os fetos em seus ventres, eram assim simbolicamente transferidas ao espaço da família. Não por acaso, então, Dione coloca útero, seio, cordão umbilical, uma trança de cabelos nesse corpo-casa-arte. Ela cria, não um espaço feminino, mas um espaço do feminino, com as questões arcaicas e tão atuais que o compõem.
Esse corpo-casa é uma busca do identitário, e os espelhos (um nítido, outro, significativamente, velado pelo óleo) o evidenciam. Não se trata apenas, no entanto, de sua identidade pessoal, mas novamente de uma questão mais ampla, profunda e generosa: uma interrogação sobre a potência do feminino, sua capacidade prometêica de fazer florescer o calcinado, de purificar pela unção, de unir os vestígios, "pequenos e frágeis testemunhos de uma origem", segundo a artista, e atribuir-lhes sentido.
Sua busca das origens pessoais é transcendida no ato da criação, passando a espelhar o enigma de todos nós. Ao criar e ao recriar vestígios, unindo-os através de um fio condutor que evidencia a dialética destruição/ reconstrução, Dione permite que se exerça a potência da arte.
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[1] Icleia Cattani é pesquisadora e crítica de arte, Professora do Instituto de Artes da UFRGS - Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
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-Texto publicado originalmente no catálogo da exposição A Calcinação, a Unção e a Floração, 2003. MALG - Museu de Arte Leopoldo Gotuzzo, Pelotas, RS.
-Texto publicado no Terceiro Volume da Antologia "Pensamento Crítico" de Icléia Cattani, Organização Agnaldo Farias, edição FUNARTE - MEC, Rio de Janeiro, RJ, 2004.