Índices de Ausência




*Angélica de Moraes



Um sentimento forte fisga, fere e faz sangrar todo o corpo desta exposição: a memória de uma ausência. Ela pende de ganchos que se projetam de prateleiras vazias. Nada mais está em seu lugar. Rasgada na carne dos dias, arrancada do cotidiano aderido aos móveis da casa, a ausência é gume afiado que espeta e dói. A um só tempo, uiva todos os tempos deixados, todos os tempos que já não são. É lâmina e corte, tudo misturado e fundo. Mordendo e mordendo. É oco. É abismo. É o impossível convívio na mesa sem superfície, na cadeira sem assento, na lembrança sem trégua, sem descanso. É aquela lágrima em suspensão, cavando caminhos ásperos e noturnos até desaguar no fel da manhã.

Esta mostra individual de Dione Veiga Vieira morde um naco de dor que, cedo ou tarde, todos vamos trincar nos dentes. Afinal, ensinam as escrituras bíblicas, do pó viemos e ao pó iremos retornar. Em latim, a certeza soa ainda mais inexorável: Pulvis es et in pulverem reverteris. Há raiva e dor, sim, muita. Ira contra o absurdo e o precário que ronda a existência. Não há espaço para um doce folhear de álbum de recordações. As lembranças são abrasivas e tocam nervos expostos. A casa está lotada de ausências que pousam em todos os objetos e se agarram com força nas roupas.

Embora tenha começado a construir sua identidade artística com uma produção nascida na pintura matérica, Dione alcançou maior densidade para sua arte quando transferiu seu campo de atuação da planaridade da tela para a tridimensionalidade da instalação e do objeto. Toda a rica investigação de texturas, existentes nos pigmentos terrosos e nos materiais carbonizados que se desmancham em nódoas indeléveis, foram potencializados e transferidos para instalações descarnadas e dramáticas.

Foi nesse diapasão que Dione realizou a tocante instalação sacra O Corpo Invisível, em 2002. Como bem observou Mário Röhnelt, nessa obra Dione revisita a tradição da pintura religiosa, expandindo-a da moldura do quadro para todo o espaço de uma capela, tomado como o próprio corpo de Cristo. Assim, “... o drama alastra-se pelo chão de sua própria casa, que também é seu corpo, que também é nosso corpo individual e social”. Ali, o sangue do martírio perpassa toda a cena, seja nas “veias” feitas de finos tubos plásticos, seja nas estopas encharcadas ou nas bacias. As feridas são lavadas, o sofrimento é tratado.

Na instalação seguinte - realizada em Pelotas em 2003 e denominada A Calcinação, a Unção e a Floração - Dione seculariza a temática da perda e a exorciza. É quando a artista encontra o percurso redentor na própria afirmação da força da vida e dos ciclos da natureza.

A instalação exibida em Pelotas chega agora ao MAC-RS como eixo de uma mostra individual mais extensa, em que a temática da perda adquire ainda maior tensão dramática. Lá como aqui, fica cada vez mais nítida a filiação de Dione à poesia visual, esse interstício entre artes plásticas e literatura.

Assim como o catalão Joan Brossa (1919-1998), a artista gaúcha constrói uma nova semântica para os objetos ao associá-los de modo aparentemente aleatório e incongruente. O que faz um ovo na exata intersecção de uma dobra de toalha de mesa? E a colher colocada cuidadosamente eqüidistante das bordas do tecido onde repousa? Há nessas propostas uma ossatura sólida, ancorada na genealogia surrealista.

A idéia do estranhamento, ou dépaysement, como bem anotou André Breton, é função essencial das operações surrealistas. Dione instala estranhamentos eficazes ao reunir coisas banais e imantá-las de novos significados. As coisas são elas próprias e algo mais. Esse algo brota do inconsciente para costurá-las de sentido. São sensações levíssimas, que guardamos sem saber bem porque, em compartimentos pequenos e quase inacessíveis. A racionalidade nos avisa que não há aí qualquer utilidade prática, mas quem diz que conseguimos descartar essas coisas de nós?

A exposição se desdobra assim, em memória e ausência. Há uma cuidadosa arqueologia de gavetas de guardados e uma insistência crispada na re-significação do cotidiano recortado no gume da perda. O tempo já vivido aflora nas coisas. É quando a colher remete a quem alimentava. O ovo compartilha com o ventre feminino as redondezas da gestação. A toalha convoca para o convívio da refeição em família. Na síntese visual, o poema se constrói tomando de empréstimo nossas próprias memórias.

A fotografia entra nesse conjunto para ajudar a compor a trama de malhas cada vez mais apertadas em que a artista nos coloca ao longo do percurso da mostra. As fotos também ressoam um vocabulário surreal, em que o manequim sinaliza o duplo, a presença fantasmal. O outro lado do espelho. Algo de contornos indefinidos, descorados, como a imagem em negativo que se esvai em branco no que antes era sólida presença em negro.



O vestido pendurado no trinco de uma janela entreaberta novamente estabelece a metáfora do corpo/casa e a redenção transportada no ar e na luz que entra. A aceitação da perda e o escoar do tempo cicatriza os cortes, areja a habitação e o estar no mundo. Restaura o ritual de por a mesa e compartilhar os alimentos. Finalmente o eterno repousa no trivial e infunde espessura a nossos passos. A ausência ganha os contornos e a fidelidade de nossa sombra.



*Angélica de Moraes é Crítica de Artes Visuais, curadora independente, jornalista cultural.


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Texto publicado no catálogo da exposição Fragmentos Primordiais, 2004. Sala Especial MAC-RS - Museu de Arte Contemporânea do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, RS. 


  
Dione Veiga Vieira. Fragmentos Primordiais/2004. Vista Parcial da exposição/MAC-RS - Museu de Arte Contemporânea do RS.



Vestígio e Sentido


Icléia Borsa Cattani ¹


Vestígios: não resultantes de uma catástrofe ou de uma lenta ação do tempo, mas criados por uma artista.

Toda a nossa vida é marcada por vestígios, que recebemos do mundo à volta ou que nós mesmos produzimos, involuntariamente, durante nossas trajetórias de vida. Uma fotografia cuja origem se perdeu, um objeto que guardamos durante anos por razões evidentes ou obscuras, fragmentos do mundo que recolhemos, como conchas, seixos, folhas secas, e ainda, pequenos indícios das pessoas amadas, presentes ou que se foram, como, um lenço, uma louça de uso pessoal, tantos outros...

Fragmentos de vidas, de um transcurso temporal, que permanecem como vestígios de nossas origens, de nossas raízes pessoais, familiares, étnicas, culturais e, num sentido mais amplo, de testemunhas de um possível sentido da vida.

Na arte, esses elementos são resignificados, adquirindo um sentido poético que vai muito além de sua simples origem de testemunhos, de talismãs ou de fetiches. Eles congregam-se através de um fio condutor que os aprofunda e os engrandece.

Fogo: no trabalho atual de Dione Veiga Vieira, o fio condutor é o fogo. O fogo é o que une os fragmentos, transmutando-os em vestígios com significados comuns. A artista impregnou-se das análises de Bachelard em Psicanálise do Fogo, sublimando os enigmas de sua história pessoal através de suas obras. O fogo, de elemento fundador do mistério maior de suas origens, transformou-se em matéria fundante de sua poética, isto é, de sua escolha dos materiais, de seu processo de criação e da instauração das obras elas mesmas. O fogo controlado, em oposição ao fogo destruidor que aniquila. O fogo positivo, que pode transformar-se em fertilizante do qual germinam novas vidas. E, entre ambos, a unção, o ato da artista de purificar os vestígios, atribuindo-lhes novas vidas enquanto elementos estéticos, enquanto arte. O fogo de Prometeu, que serve para criar. O artista como demiurgo que transforma os fragmentos numa totalidade plena de sentido, por sua ação sobre a matéria.

O fogo purifica. A matéria calcinada é outra em relação à original. Ungir a matéria queimada, com óleo, como num batismo ou na extrema-unção, é purificá-la duas vezes. Mas materializa também, o gesto demiúrgico do artista de dar vida a "pseudo-pessoas", que são as obras, segundo o conceito de René Passeron. Esperar que, dessas "pseudo-pessoas", venha a floração, é expressar o desejo que elas cumpram o destino humano, que é florir e frutificar, antes de fenecer. Todavia, sendo as obras de arte feitas para uma vida muito mais longa do que a nossa, o processo de floração pode ser permanente, atravessar os séculos. Através dele, a artista cria uma outra vida para os fragmentos de sua história: purificados de sua temporalidade e de sua circunstancialidade, eles florescem para sempre no âmbito das representações simbólicas.

Superfície: Dione sempre foi sensível à superfície das coisas, no mundo e em sua obra. Superfícies lisas, rugosas, ásperas, coexistiam em suas pinturas dos anos 80, compondo a pele dos trabalhos. Mas, não nos enganemos: como afirmou Paul Valéry, "o mais profundo, é a pele". Em nossa pele, inscrevem-se as sensações e os sentimentos mais arcaicos e mais profundos. O amor e o ódio nos são ensinados, sobretudo, através da pele: as carícias ou os maus-tratos, criam o mapa de nossas relações com o mundo.

Em trabalhos de dois anos atrás, Dione realizou furos: a superfície transpassada, como num ferimento, desvendava o interior. Não por coincidência, a artista estava, naquele momento, criando obras tridimensionais, semelhantes a pedaços de corpos, animais ou humanos: muitos lembravam carcaças nas quais a carne se expunha, despida do seu invólucro.

Nos trabalhos atuais, o fogo define a superfície das coisas. Ele modifica a matéria ao calciná-la, como a madeira transformada em carvão, mas também deposita, mesmo sobre as superfícies intocadas, uma camada de cinzas, como um véu. Poucos objetos escapam ilesos dessa ação, que contamina num negror ou em tons de cinza de tal modo, que todas as formas e todas as superfícies se confundem. O óleo que a artista passa não limpa os objetos, antes fixa para sempre a fuligem, acentuando as marcas e as cicatrizes provocadas pela ação do fogo e do tempo.

Objetos: os objetos são de duas ordens, nas instalações propostas. Primeiramente, os que são da ordem dos vestígios: cabelos, órgãos internos em parafina (comprados em lojas de ex-votos), carvão, espelhos, um "cordão umbilical" feito com arame e estopa. Por outro lado, aqueles que servem para conter, organizar ou expor: caixas e bacias, prateleiras, bancos. Todos esses objetos remetem ao corpo e ao universo doméstico da casa, estabelecendo um paralelismo entre ambos, que a artista enfatiza em seus textos. A casa como nosso continente, nosso segundo corpo, útero substitutivo que recria a ilusão da segurança e da completude perdidas. E isso nos remete a outro significado do fogo: em francês, a mesma palavra, foyer, designa o lar e o antigo centro de calor da casa, onde o fogo devia ser mantido permanentemente aceso em tempos passados, para garantir as condições de sobrevivência dos moradores: o calor e o alimento. Normalmente, eram as mulheres da casa as responsáveis pela manutenção desse fogo, durante as vinte e quatro horas do dia. As funções biológicas femininas, de abrigar e nutrir os fetos em seus ventres, eram assim simbolicamente transferidas ao espaço da família. Não por acaso, então, Dione coloca útero, seio, cordão umbilical, uma trança de cabelos nesse corpo-casa-arte. Ela cria, não um espaço feminino, mas um espaço do feminino, com as questões arcaicas e tão atuais que o compõem.

Esse corpo-casa é uma busca do identitário, e os espelhos (um nítido, outro, significativamente, velado pelo óleo) o evidenciam. Não se trata apenas, no entanto, de sua identidade pessoal, mas novamente de uma questão mais ampla, profunda e generosa: uma interrogação sobre a potência do feminino, sua capacidade prometêica de fazer florescer o calcinado, de purificar pela unção, de unir os vestígios, "pequenos e frágeis testemunhos de uma origem", segundo a artista, e atribuir-lhes sentido.

Sua busca das origens pessoais é transcendida no ato da criação, passando a espelhar o enigma de todos nós. Ao criar e ao recriar vestígios, unindo-os através de um fio condutor que evidencia a dialética destruição/ reconstrução, Dione permite que se exerça a potência da arte.

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[1] Icleia Cattani é pesquisadora e crítica de arte, Professora do Instituto de Artes da UFRGS - Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
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-Texto publicado originalmente no catálogo da exposição A Calcinação, a Unção e a Floração, 2003. MALG - Museu de Arte Leopoldo Gotuzzo, Pelotas, RS.

-Texto publicado no Terceiro Volume da Antologia "Pensamento Crítico" de Icléia Cattani, Organização Agnaldo Farias, edição FUNARTE - MEC, Rio de Janeiro, RJ, 2004.

O corpo invisível


*Mário Röhnelt


A instalação O Corpo Invisível, de Dione Veiga Vieira, na capela da Rua Dom Pedro II, em Porto Alegre, RS, impacta de imediato. Pequena e de espaço único, de poucas interferências, a capela pode ser abrangida de todo pelo olhar de quem entra. Ao fundo vemos um pequeno altar de madeira e na parede atrás deste, alguns vitrais. Dione fez sair desta parede, ao fundo, diversos tubos plásticos transparentes preenchidos de um líquido vermelho assemelhado ao sangue. O conjunto de tubos desce da parede de onde emergiram, atingem o chão da capela e dirigem-se à frente da mesma rarefazendo-se gradativamente, e retornam à sua origem pouco depois de atingirem a metade deste espaço. Aqui e ali estão dispostas algumas bacias metálicas contendo estopas embebidas no mesmo líquido vermelho que preenche os tubos plásticos.


Não fica dúvida. A obra remete à Paixão de Cristo. Mesmo para um leigo como eu, a capela é o lugar onde os crentes lembram e homenageiam o sofrimento e redenção daquele que se tornou o símbolo do sofrimento e redenção de cada um de nós, unidades da raça humana. Na metáfora de Dione, as veias, onde circula a seiva que alimenta a vida, são extraídas do seu esconderijo corporal e expostas ao olhar. Isso ocorre no espaço da capela que assim transmuta-se, simbolicamente, em corpo. Sendo ela, um espaço sagrado, o corpo simbólico em que é transformada é portanto um corpo sagrado. Adiante de qualquer retórica imposta ao fato visual, são inequívocas a presença dessas aproximações. Um drama cria a sua atmosfera nesse espaço. As bacias e suas estopas, tintas de vermelho, lembram que o corpo precisa ou precisou ser limpo e o sofrimento tratado.


Como espectadores somos conduzidos portanto ao interior de um corpo, mas um corpo de hierarquia superior ou à esta associado, pois é sagrada, religiosa. Isto decorre de uma espécie de adequação delicada, sutil e respeitosa com que a obra de Dione se insere no espaço da capela. Na verdade pode-se dizer que a instalação se dá não só no espaço enquanto metros cúbicos, largura, profundidade e altura, mas numa espécie de aderência ao caráter simbólico deste espaço.


Diferentemente de uma galeria de arte que possui, digamos, espaço maleável à diversos significados, a capela impõe-se pela força de seu significado próprio. Dione parece compreender isto. E mais, parece se interessar por isto e acaba por construir um equivalente contemporâneo à pintura religiosa do passado. Os elementos estão presentes. A memória e fantasma da dor estão presentes. A generalização da idéia de sofrimento transporta os observadores para um culto coletivo, uma vez que todos nós, visitantes, reconhecemos nesse espaço aquilo que nos é atávico, a dor que nos é comum ou será.


Se na arte do passado o sofrimento do Cristo está contido nos limites da moldura, nesta instalação este drama alastra-se pelo chão de sua própria casa, que também é seu corpo, que também é nosso corpo individual e social.




* Mário Röhnelt

 Artista Plástico
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