O corpo invisível





*Mário Röhnelt


A instalação O Corpo Invisível, de Dione Veiga Vieira, na capela da Rua Dom Pedro II, em Porto Alegre, RS, impacta de imediato. Pequena e de espaço único, de poucas interferências, a capela pode ser abrangida de todo pelo olhar de quem entra. Ao fundo vemos um pequeno altar de madeira e na parede atrás deste, alguns vitrais. Dione fez sair desta parede, ao fundo, diversos tubos plásticos transparentes preenchidos de um líquido vermelho assemelhado ao sangue. O conjunto de tubos desce da parede de onde emergiram, atingem o chão da capela e dirigem-se à frente da mesma rarefazendo-se gradativamente, e retornam à sua origem pouco depois de atingirem a metade deste espaço. Aqui e ali estão dispostas algumas bacias metálicas contendo estopas embebidas no mesmo líquido vermelho que preenche os tubos plásticos.


Não fica dúvida. A obra remete à Paixão de Cristo. Mesmo para um leigo como eu, a capela é o lugar onde os crentes lembram e homenageiam o sofrimento e redenção daquele que se tornou o símbolo do sofrimento e redenção de cada um de nós, unidades da raça humana. Na metáfora de Dione, as veias, onde circula a seiva que alimenta a vida, são extraídas do seu esconderijo corporal e expostas ao olhar. Isso ocorre no espaço da capela que assim transmuta-se, simbolicamente, em corpo. Sendo ela, um espaço sagrado, o corpo simbólico em que é transformada é portanto um corpo sagrado. Adiante de qualquer retórica imposta ao fato visual, são inequívocas a presença dessas aproximações. Um drama cria a sua atmosfera nesse espaço. As bacias e suas estopas, tintas de vermelho, lembram que o corpo precisa ou precisou ser limpo e o sofrimento tratado.


Como espectadores somos conduzidos portanto ao interior de um corpo, mas um corpo de hierarquia superior ou à esta associado, pois é sagrada, religiosa. Isto decorre de uma espécie de adequação delicada, sutil e respeitosa com que a obra de Dione se insere no espaço da capela. Na verdade pode-se dizer que a instalação se dá não só no espaço enquanto metros cúbicos, largura, profundidade e altura, mas numa espécie de aderência ao caráter simbólico deste espaço.


Diferentemente de uma galeria de arte que possui, digamos, espaço maleável à diversos significados, a capela impõe-se pela força de seu significado próprio. Dione parece compreender isto. E mais, parece se interessar por isto e acaba por construir um equivalente contemporâneo à pintura religiosa do passado. Os elementos estão presentes. A memória e fantasma da dor estão presentes. A generalização da idéia de sofrimento transporta os observadores para um culto coletivo, uma vez que todos nós, visitantes, reconhecemos nesse espaço aquilo que nos é atávico, a dor que nos é comum ou será.


Se na arte do passado o sofrimento do Cristo está contido nos limites da moldura, nesta instalação este drama alastra-se pelo chão de sua própria casa, que também é seu corpo, que também é nosso corpo individual e social.




* Mário Röhnelt

 Artista Plástico
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